quarta-feira, maio 16, 2007

Pedra Filosofal

"Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam

em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho

é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento,

de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo

num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho

é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel,

arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral,

contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia,

que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante,

rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista,

que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim,

florete de espadachim,

bastidor, passo de dança,

Colombina e Arlequim,

passarola voadora,

pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva,

alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar,

ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão

na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha

o mundo pula e avança

como bola colorida

entre as mãos de uma criança."



António Gedeão

1956

in Movimento Perpétuo

sábado, maio 12, 2007

Um olhar...

"Um encontro é sempre um início de universo

e sentir na imperfeição a perfeita coluna de cristal

do puro entendimento entre o pudor e a vibração de um segredo

queremos sempre ser mais para sermos o que não somos e o que

[somos

e por isso a palavra adianta-se na sua trémula e cintilante audácia

que se eleva no cimo do encontro em transparências novas

É sempre o outro o polo da identidade viva

e a mais segura afirmação do ser

A palavra arde porque ama porque é uma flecha verde

que se incendeia antes de tocar o alvo

e quando o atinge recebe outra amorosa flecha

que ilumina o peito amante do que fala

Que mistério puro de ardentes evidências

que lavam o rosto que perfumam os lábios

e que ondulam em voluptuosa confiança

abrindo o espaço do mundo e transformando-o em jardim!

É assim que o pão e o vinho são partilhados à mesa branca

do afectuoso diálogo sob a cúpula transparente

de uma aragem amena em que o Uno cintila

Este fermento vermelho ou azul de uma clara amizade

é um astro de centelhas cálidas num firmamento branco

Só por ele nós somos o outro de nós mesmos

e em cada rosto cintila a identidade aberta

de quem pertence a si porque pertence ao mundo"



António Ramos Rosa

8 de Fevereiro de 1993

in O Alvor do Mundo, edições quasi